IMARA: uma nova aliança global em defesa dos artistas musicais

Os artistas musicais dispõem de uma nova organização global para a defesa dos seus direitos. A IMARA – International Music Artists Rights Alliance nasceu para enfrentar desafios como a remuneração justa no streaming, a proteção dos direitos conexos no audiovisual e a regulamentação da inteligência artificial.

No passado dia 27 de fevereiro, foi oficialmente constituída a IMARA – International Music Artists Rights Alliance, uma nova federação internacional dedicada à defesa dos direitos dos artistas musicais. A sessão decorreu na sede da AIE, sociedade de gestão coletiva dos músicos em Espanha, em Barcelona, e contou com a presença de representantes de diversas entidades internacionais, incluindo a GDA, representada por Claudia Cadima.

A IMARA nasce para enfrentar desafios como a remuneração justa no streaming, a proteção dos direitos conexos dos músicos no audiovisual, e a regulamentação da inteligência artificial. A sua estrutura de governação assegura representatividade global, sendo a presidência assumida por Annie Morin (ARTISTI, Canadá) e a direção-geral por José Luís Sevillano (AIE, Espanha).

Diálogo e convergência estratégica

A adesão da GDA à IMARA cumpre o mandato aprovado na última Assembleia Geral, onde foi sublinhada a necessidade de coerência entre as soluções defendidas internamente e externamente. A GDA assume, assim, um papel ativo na promoção do diálogo e da convergência estratégica entre as organizações que representam artistas, reforçando a sua capacidade de intervenção na defesa dos direitos dos artistas a nível global. Esta abordagem, destacada pela Direção na Assembleia, sustenta a importância de um alinhamento concertado entre a IMARA e a GAVA (Global Audiovisual Alliance), garantindo uma resposta coordenada a desafios emergentes.

A decisão de integrar a IMARA segue a lógica da anterior adesão da GDA à GAVA, igualmente aprovada por unanimidade. A GAVA iniciou recentemente a sua atividade e encontra-se ainda num processo de afirmação e consolidação.

Dar globalmente voz aos artistas

Tanto a IMARA como a GAVA distinguem-se das restantes estruturas internacionais de que a GDA faz parte por serem alianças essencialmente políticas, concebidas para dar voz exclusiva aos artistas intérpretes e executantes. São compostas exclusivamente por entidades que representam artistas, o que lhes permite adotar uma perspetiva centrada nos seus direitos e interesses. Essa composição diferencia-as de outras plataformas onde estão representadas entidades mistas que representam simultaneamente artistas e produtores.

Na Europa, a AEPO-ARTIS continua a desempenhar um papel relevante nesta frente, embora integre igualmente sociedades mistas. A IMARA e a GAVA, por sua vez, representam um espaço de afirmação independente da voz dos artistas a nível global, criando condições para uma intervenção autónoma e estratégica e — desejavelmente — coesa face aos desafios que hoje se colocam ao setor.

Com sede em Londres, a IMARA prevê a entrada futura de entidades da América Latina e de África. Para a GDA, esta dimensão internacional visa, em última instância, contribuir para a afirmação dos direitos dos artistas, assegurando que possam ser reconhecidos e exercidos, independentemente do país onde o artista via ou do local onde os seus direitos tenham sido gerados.

Atores refletem sobre o impacto da Inteligência Artificial

A GDA participou  num recente encontro internacional de entidades de gestão coletiva que representam atores em que se debateram os desafios que a Inteligência Artificial Generativa está a colocar aos seus direitos e ao reconhecimento e sustentabilidade das suas carreiras. Saiba o que está em causa

Os recentes desenvolvimentos da inteligência artificial generativa (IA generativa) poderão ter um impacto sem precedentes na indústria audiovisual, suscitando um crescente rol de preocupações entre os atores e demais profissionais criativos, confrontados com questões sobre direitos económicos, direitos morais e de personalidade e ainda a sustentabilidade das suas carreiras.

Esse foi o assunto mais intensamente discutido no quarto encontro do Actor’s Summit, que decorreu em Londres, a 22 de outubro, tendo contado com a participação de Claudia Cadima, diretora de Relações Internacionais da GDA.

O Actor’s Summit é um fórum de atores que emergiu do seio da SCAPR e AEPO-ARTIS (duas entidades internacionais que agrupam organizações de gestão de direitos de artistas) para refletir sobre questões específicas da classe.

“Entre os atores de todo o mundo é consensual que o advento da AI generativa representa um dos maiores desafios e ameaças de sempre para os atores”, afirma Claudia Cadima.

Segundo a atriz, uma das maiores preocupações do momento prende-se com o uso da voz e da imagem dos atores sem o consentimento devidamente informado e compensação adequada.

“Para lá da especial atenção que mais do que nunca devem agora prestar aos contratos que assinam, o patamar mínimo que neste momento se impõe aos atores é o de exigirem o seu consentimento explícito e informado para qualquer uso da sua imagem ou voz para criar modelos de inteligência artificial generativa”, sublinha.

O uso não regulado da IA generativa na criação de atuações e vozes digitais, levanta sérias preocupações sobre a substituição de talentos humanos por avatares digitais.

Desequilíbrios vários

Das inquietações manifestadas pelos artistas resultaram, nos últimos meses, uma miríade de iniciativas e de documentos com informação que visa dar orientações e sugestões aos artistas de como se protegerem.

É o caso, entre outros do TV/Theatrical Contract AI Proposal, produzido pela organização sindical norte-americana SAG-AFTRA. Mas também da GDA que, no verão passado, publicou no seu website um guia para ajudar a mitigar o impacto da utilização de IA Generativa no meio artístico.

O uso da imagem e da voz sem o devido consentimento informado ou compensação adequada tem sido uma prática corrente que abre portas a abusos diversos, como “atuações digitais” criadas ou replicadas.

Além disso, verifica-se uma total inadequação e desequilíbrio no processo de negociação dos contratos. Muitas vezes a proteção e o respeito pelos direitos dos artistas são preteridos em relação aos interesses comerciais das empresas de entretenimento e de tecnologia.

Acontece com frequência que os contratos são formulados sem pormenorizarem ou limitarem claramente a utilização das prestações artísticas para desenvolverem modelos de IA. Desse modo, cria-se uma névoa na regulação dos contratos, onde os artistas acabam por perder o controlo sobre a utilização das suas prestações artísticas.

O encontro de Londres teve como convidado virtual Duncan Crabtree-Ireland, um proeminente dirigente da SAG-AFTRA, que desempenhou um papel crucial na recente greve de atores de Hollywood. Foi ele quem liderou as negociações com os grandes estúdios, tendo sido a sua atuação fulcral em todo o processo.

No Actor’s Summit, partilhou o seu valioso conhecimento sobre o que está a ocorrer nos EUA, que em muito contribuíram para o debate acerca da necessidade de práticas éticas e de uma regulação clara sobre a utilização de prestações artísticas para a criação de modelos de IA Generativa e a sua utilização..

Iniciativas multiplicam-se

A criação de padrões claros e transparentes e a regulamentação são aspetos essenciais para equilibrar a inovação com os direitos dos humanos, nomeadamente com os direitos associados à utilização da propriedade intelectual. A evolução deve ir no sentido de a IA ser uma ferramenta de apoio à criatividade, mas nunca um substituto que coloque em risco a sustentabilidade do trabalho dos intérpretes.

Foi também, no final de outubro, que uma carta conjunta da AEPO-ARTIS e de outras organizações do setor das indústrias criativas, dirigida aos decisores europeus, insistiu na necessidade de regras claras que respondam ao uso intensivo de propriedade intelectual para criar modelos de IA.

Nessa carta apela-se uma implementação “significativa” da recente legislação europeia sobre IA, de forma a permitir que criadores e titulares de direitos exerçam e façam valer os seus direitos, quando o seu trabalho é usado para treinar modelos de IA.

Esse apelo dirigido aos legisladores da União Europeia, teve como objetivo sensibilizar os organismos europeus para a necessidade de uma regulamentação que salvaguarde os direitos dos artistas.

Esta ação reforça e é reforçada por outras que pedem à indústria o compromisso ético de priorizar o valor humano e criativo em todas as suas práticas.

É o caso de uma curta Declaração sobre o treino da IA, que já foi assinada por quase 34 mil pessoas e que, quem nos estiver a ler, ainda pode subscrever aqui.

Esse movimento, que continua em crescimento, destaca a importância de um sistema de compensação que reflita o valor real do contributo dos artistas considerando que a inovação tecnológica deve coexistir com o reconhecimento e respeito pelos direitos humanos e trabalho humano, impulsionando a criatividade humana.

«Não pedimos para travar a inovação, apenas para se definirem os parâmetros para uma coexistência equilibrada. A IA deve ser uma aliada para enriquecer o trabalho artístico, mas não pode comprometer os valores éticos e a sustentabilidade de carreiras», conclui Claudia Cadima.

Inteligência Artificial: O que devemos ter em conta nos contratos com produtores em tempos de IA?

Os artistas devem ter cuidado com cláusulas contratuais ambíguas que possam permitir a exploração das suas gravações por modelos de Inteligência Artificial. Aqui deixamos um guia de como pode proteger os seus direitos

Os artistas devem estar atentos a cláusulas contratuais vagas que possam levar a uma extensão da utilização ou exploração das gravações efetuadas a formas desconhecidas, incluindo Inteligência Artificial. Se possível, estas cláusulas devem ser eliminadas, ou devem definir-se com mais precisão as finalidades para as quais os contratos são feitos.

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Imagem: https://www.flaticon.com/free-icons/save - Save icons created by Bharat Icons - FlaticonOs contratos devem detalhar exaustivamente a utilização das prestações artísticas pretendidas, utilizando termos e conceitos (legais) precisos, tais como: direito de reprodução, direito de comunicação pública (incluindo o direito de colocar à disposição do público) e direito de sincronização.

As autorizações relativas aos direitos pessoais e de personalidade (utilização da voz, imagem, características pessoais, etc.) e a respetiva finalidade devem ser definidas com rigor, de acordo apenas com as finalidades para as quais são concedidas.

Recomenda-se que a autorização seja limitada às características de identificação do artista (nome, pseudónimo, nome artístico, imagem e retratos), exclusivamente em relação ao marketing e promoção das gravações (reproduções) do artista e respetiva exploração comercial.

Desta forma, caso uma interpretação ou características da mesma sejam exploradas para além do que foi concedido, o artista deve ter a possibilidade de exigir remuneração adicional. Neste caso, é aconselhável utilizar um documento separado do contrato original. Acresce que, algumas utilizações indesejáveis, por exemplo deepfakes, podem seguramente ser liminarmente proibidas.

Estratégias contratuais:
como mitigar o impacto da utilização da Inteligência Artificial no meio artístico?

1) O objeto e o âmbito de aplicação dos contratos realizados com os produtores devem ficar estritamente definidos, indicando claramente as formas de exploração visadas, quem pode levar a cabo as mesmas (apenas o produtor ou qualquer terceiro indicado pelo mesmo?), em concreto quais as interpretações (atuais ou futuras), e/ou qual ou quais dos direitos de personalidade do artista (voz, imagem, retrato ou qualquer outra característica do artista) podem ser utilizados individualmente ou em simultâneo com as interpretações gravadas, quer se trate ou não de uma transformação intencional, e no caso afirmativo, até que ponto, se vão ou não ser utilizados para efeitos de aprendizagem de máquinas (1) (do Inglês, machine learning) ou de qualquer outro processo que envolva IA, e/ou noutras plataformas ou media que recorrem à utilização tecnologia de IA. A autorização também necessita de clarificar os respetivos detalhes sobre a duração, território e remuneração adequada.

2) Neste contexto, devem ser tidos em consideração o Artigo 4.º, n.º3 da Diretiva do Direito de Autor e Direitos Conexos no Mercado Único Digital e o Artigo 75.º, n.º 2, alínea w) do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 47/2023, de 19 de Junho. Esta disposição determina em particular que:

  • Para cada forma de exploração, a remuneração do artista, o âmbito ou a duração do licenciamento devem estar expressamente determinados. Não obstante, qualquer disposição em contrário, a cedência de direitos ou a concessão de licenciamento relativamente a formas de exploração que ainda não sejam conhecidas, é nula e de nenhum efeito.
  • A cedência ou o licenciamento de direitos patrimoniais relativamente ao futuro só é valida durante um período limitado e desde que o tipo de prestações em causa seja discriminado.
  • Deve estar prevista uma opção de exclusão (op-out) relativamente à exceção de mineração de dados e texto (TDM), para impedir que as interpretações cobertas pelo contrato possam ser objeto de sampling e/ou usadas para treino de algoritmos de inteligência artificial (no contexto de aprendizagem de máquina).

3) Também é possível incluir uma cláusula contratual específica a prever autorização prévia do artista para qualquer nova forma de exploração, incluindo qualquer transformação, de qualquer interpretação actual ou futura e/ou dos direitos pessoais ou de personalidade do artista, por parte do produtor ou de qualquer terceiro autorizado por este, incluindo utilizações em tecnologia de IA, sob pena de proibição de utilização ou do estabelecimento de uma cláusula penal. Esta autorização específica deve ser obtida por escrito e deve referir exaustivamente as possibilidades de utilização das interpretações, dados pessoais, voz, imagem, retrato ou quaisquer outras características do artista que possam ser utilizadas individualmente ou combinadas com as interpretações gravadas num processo de aprendizagem de máquina ou em qualquer outro processo que envolva IA. A autorização específica também deve indicar claramente os pormenores relativos à duração, território e extensão da utilização e, em particular, a respetiva remuneração apropriada.

4) É igualmente útil especificar numa cláusula contratual adicional, que nenhuma nova gravação sem intervenção humana por parte do artista, poderá ser publicada ou comunicada ao público, e que todas as gravações cobertas pelo contrato devem conter gravações de interpretações efetuadas pelo artista diretamente.

5) Se o artista concordar com a circulação de novas gravações sem intervenção humana, o método de cálculo dos royalties deve ficar indicado e as interpretações sem intervenção humana devem ser mencionadas como tal. A utilização dos direitos dos artistas através da IA tem um valor económico que deve ficar expresso no contrato. Neste caso, é aconselhável usar um documento separado do contrato original.

6) Nalguns casos, será interessante incluir um mecanismo de atualização do contrato por mútuo acordo, o que permite ter em consideração os desenvolvimentos tecnológicos da IA e/ou utilizações relacionadas que não tenham sido previstas antecipadamente e respetivas implicações para os direitos dos artistas.

7) Também é relevante incluir uma obrigação de transparência no contrato, pelo menos de acordo com os requisitos do nº 3 do Artigo 44º B do Decreto-Lei nº 47º/2023, de 19 de Junho, ou seja, a obrigação de prestar, pelo menos uma vez por ano, informação completa, atualizada e relevante sobre a exploração das interpretações, particularmente no que respeita às formas de exploração, todo o rendimento gerado e a remuneração devida discriminada por tipo de exploração.

8) Os artistas não só não podem ceder a totalidade do exercício dos seus direitos morais (que são inalienáveis de acordo com a lei Portuguesa) nas suas interpretações, como qualquer cláusula neste sentido é nula e de nenhum efeito. De qualquer forma, o artista retém sempre o direito de se opor a qualquer distorção, mutilação ou outra modificação da sua interpretação ou a qualquer outro prejuízo que afete a sua honra ou reputação. Pode ser adicionada uma cláusula neste sentido, mas não é essencial.

9) Sempre que possível, a lei aplicável deve ser a lei Portuguesa ou, caso não seja possível, a lei de um Estado-membro da União Europeia, sendo que os tribunais competentes devem ser os tribunais Portugueses ou, não sendo possível, os tribunais de um Estado-membro da União Europeia.

Exemplo de uma clausula contratual-tipo que exclua a utilização de Inteligência Artificial:

Na sequência do acima referido, apresenta-se um exemplo de uma cláusula-tipo que visa a exclusão da IA. Esta cláusula é exclusivamente para efeitos de exemplificação e não pode ser adequada perante todas as circunstâncias relacionadas com os contratos com os artistas, incluindo os casos em que esses contratos não estão sujeitos à lei Portuguesa. A GDA, portanto, não tem qualquer responsabilidade pela utilização desta cláusula-tipo e recomenda, sempre que adequado, que a cláusula seja adaptada à situação concreta, preferencialmente com a ajuda de um jurista ou de um advogado especializado.

Exemplo de uma clausula de exclusão referente a interpretações e direitos de personalidade:

“As interpretações gravadas respeitantes ao presente contrato, bem como os direitos de personalidade do artista, incluindo sem limitação, a voz do artista, imagem, retrato ou qualquer outra característica, quer individualmente quer em conjunto com as interpretações gravadas objecto do presente contrato, tal como ficaram ou com qualquer alteração posterior, não podem ser reproduzidas, comunicadas ao público, publicadas, serem objeto de sampling e/ou utilizadas de qualquer forma para efeitos de treino de tecnologias de inteligência artificial para gerar imagens, vídeos e/ou sons, ou para avaliação e validação de modelos gerados por inteligência artificial ou computadores, incluindo mas não se limitando tecnologias capazes de gerar interpretações no mesmo estilo ou género que as interpretações gravadas, e/ou em quaisquer outros processos que envolvam inteligência artificial, incluindo tecnologias atuais de modelos de aprendizagem de máquina, redes neurais e algoritmos de aprendizagem profunda, bem como quaisquer outros desenvolvimentos tecnológicos que possam facilitar a criação, modificação ou síntese das interpretações gravadas pelo artista ou características, incluindo mas não se limitando a geração de novas interpretações, imagens, vídeos e/ou sons sem intervenção humana, do artista.”


(1) A decisão de aceitar ou excluir a possibilidade de utilização de dados pessoais ou direitos de personalidade para efeitos de machine learning ou inteligência artificial compete ao próprio artista. No entanto, ao decidir, o mesmo deve ter presente os riscos que este tipo de autorização pode acarretar ao nível do respetivo mercado de trabalho.

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Pensar os direitos em tempos de mudança

Neste número da nossa Newsletter, damos início a uma série de artigos de opinião, assinados por responsáveis de sociedades de gestão congéneres da GDA. O convidado desta edição é Abel Martín Villarejo, advogado e diretor geral da AISGE, de Espanha.

Os paradigmas do ‘Deus Tecno’

Por Abel Martín Villarejo, advogado e diretor-geral da AISGE (Espanha)

Por detrás de cada criação há alguém que investiu tempo, talento e esforço. Se não o protegermos hoje, amanhã quem sofrerá essa desproteção serás tu.

Os criadores artísticos, em todas as suas formas, enfrentam há séculos um inimigo silencioso: a marginalização jurídica ou a invisibilidade legal. Enquanto o produto do seu trabalho criativo ocupa capas de revistas, galerias e palcos – e mesmo tendo sido o alicerce económico da rádio, da televisão, do cinema e das atuais plataformas digitais – os seus direitos permanecem frequentemente em segundo plano, sujeitos a interpretações variáveis, lacunas legais ou interesses económicos dominantes.

Hoje, mais do que nunca, informar sobre a realidade legislativa, contratual e o impacto dos avanços tecnológicos sobre o trabalho criativo e as suas formas de exploração não deve ser encarado como um exercício académico, teórico ou especulativo, mas sim como uma verdadeira necessidade social, cultural, económica e democrática. Em suma, como um ato de justiça e de responsabilidade.

O desconhecimento, as crenças mal formadas e os interesses espúrios contribuem para o estado de confusão social, política e institucional que atravessa o setor cultural, onde o coletivo artístico é protagonista principal. Por tudo isto, é fundamental que o próprio artista-criador tome consciência do seu estatuto social e cultural, da sua realidade jurídica, e de que a luta pelos seus direitos – laborais, de propriedade intelectual, de imagem e direitos fundamentais – é a única garantia viável do seu trabalho e do seu reconhecimento futuro.

Encontramo-nos, de facto, numa fase evolutiva de profunda e vertiginosa transformação. A irrupção da Inteligência Artificial (IA), sobretudo da IA generativa; o desenvolvimento das plataformas digitais; os deepfakes e a circulação massiva de conteúdos visuais e sonoros estão a reconfigurar não apenas a forma como se cria arte, mas também como ela é explorada, distorcida e apropriada.

Neste novo cenário, o direito de autor e o direito de imagem são as primeiras linhas da frente onde se travam batalhas. Mas o direito de autor – ou, de forma mais ampla, a propriedade intelectual – carece, há décadas, de uma atualização substancial que permita responder eficazmente à nova realidade tecnológica. Os fundamentos e dogmas do direito de autor e do copyright remontam ao século XIX, e vivem hoje de costas voltadas para a tecnologia contemporânea e para as dinâmicas do mercado de conteúdos culturais, especialmente os audiovisuais.

Uma estratégia para o futuro

Com instrumentos jurídicos tão frágeis e obsoletos, é impossível enfrentar os desafios colocados pela IA e por outras tecnologias disruptivas de última geração. Na nossa modesta opinião, a estratégia de futuro deverá passar, pelo menos, pelas seguintes linhas de ação:

  1. fomentar, por parte dos próprios criadores, uma consciência ativa de defesa das suas criações e do valor do seu esforço e criatividade;
  2. atualizar a propriedade intelectual como sistema jurídico eficaz de proteção da criatividade humana;
  3. desenvolver novas fórmulas jurídicas para proteger os conteúdos gerados autonomamente, sem intervenção humana, por inteligência artificial. A tendência atual de abarcar todo o tipo de criatividade – como num saco sem fundo – sob o conceito de propriedade intelectual é, desde logo, um erro de base.

Várias batalhas vêm sendo travadas nas últimas duas décadas e em múltiplos níveis. Mas, com meios de defesa grosseiramente desiguais, a comunidade criativa enfrenta os grandes conglomerados tecnológicos multinacionais. E nesta luta desequilibrada, a parte mais poderosa já seduziu a sociedade civil com ofertas baratas, gratuitidade inicial e vantagens aparentemente insuperáveis.

A cidadania não se apercebe (e, em parte, os artistas também não) de que o caminho iniciado nos conduz ao fracasso da nossa civilização: cultura e entretenimento confundem-se; a arte deixa de estimular o pensamento crítico; deixaremos morrer as democracias por comodismo ou impotência; e, quando quisermos reagir, poderá já ser demasiado tarde.

Este pequeno espaço de reflexão sobre tecnologia e direito é apenas mais um grão de areia com o qual procuramos alertar, propor ideias e informar sobre como se poderá construir um futuro de convivência em paz e harmonia. Porque sem justiça não há paz nem futuro. E sem soluções justas, a própria indústria cultural destruirá os modelos de negócio que a sustentam – e ruirá, como ruíram as torres mais altas.

Progresso e trabalho alheio

Atualmente, os lobbies mais agressivos e influentes do “Deus Tecno” estão a promover reformas legislativas em vários centros de poder mundiais, com o objetivo de legitimar a apropriação de trabalho alheio, mesmo contra o interesse público. O paradigma económico, social, cultural, político e geopolítico está a mudar, sob o olhar atento, perplexo e impotente de todos nós.

Em Bruxelas, por exemplo, estão a ser consideradas iniciativas que poderão alterar profundamente a forma como as plataformas usam conteúdos protegidos. Ignoram-se as implicações do treino de modelos de linguagem e de geração de imagens com materiais que incluem vozes, estilos e rostos de artistas vivos. Quando se fala em “progresso tecnológico”, omite-se muitas vezes que esse progresso se alimenta do trabalho de outrem – do trabalho dos artistas. E que raramente há compensação ou reconhecimento justo.

Importa, pois, colocar nos seus devidos termos a tensão entre direito e tecnologia. Ninguém contesta os benefícios dos avanços tecnológicos na vida quotidiana, na ciência, na economia e até na cultura. A tecnologia tem sido, até hoje, aliada da criatividade – não inimiga. Mas a confluência de tantas circunstâncias adversas começa a gerar efeitos colaterais nocivos (como o impacto sobre o trabalho de atores de voz, designers, escritores, etc.) que colocam em risco todo o tecido económico e cultural.

Daí a urgência de abrir esta janela de comunicação. Vivemos rodeados de arte e de tecnologia e, todos os dias, usufruímos de ambas sem nos interrogarmos sobre o que está por trás: quem são os detentores de direitos, como esses direitos são geridos e se estão a ser respeitados.

Muitas vezes partimos do princípio de que a criatividade é livre e gratuita, como se brotasse espontaneamente de uma fonte comum – ou como cogumelos no bosque. Mas não é assim: por trás de cada criação há alguém que investiu tempo, talento e esforço. E esse investimento merece proteção adequada e digna.

Não podemos aceitar que só beneficiem desse processo aqueles que nada contribuem para a criatividade, com o argumento demagógico de que tal serve também o interesse dos cidadãos. Os cidadãos devem compreender que nada é gratuito — tudo tem um valor intrínseco, de que alguém se apropria. E que, se não respeitarmos o esforço e os direitos dos outros, também o nosso deixará de ser respeitado.

Um problema de vontade política

O direito de autor, que durante séculos protegeu os criadores contra a exploração, está hoje a ser posto à prova como nunca. As legislações nacionais tentam adaptar-se, com maior ou menor sucesso, a um contexto global e digital onde os conteúdos são carregados, editados, copiados e monetizados em segundos. O problema não é apenas técnico — é de vontade política: se não se legisla com conhecimento do mundo criativo, corre-se o risco de favorecer os grandes operadores tecnológicos em detrimento dos autores individuais.

Tão importante como o direito de autor é o direito de imagem, frequentemente esquecido nos debates sobre propriedade intelectual. O rosto, a voz, os gestos de um artista fazem parte da sua identidade, da sua marca e do seu percurso. E hoje, essas identidades podem ser recriadas digitalmente com fidelidade inquietante. A tecnologia permite clonar vozes, gerar vídeos hiper-realistas, criar avatares falsos. Que acontece quando a imagem de um ator é usada sem consentimento para publicitar um produto? Ou quando uma voz artificial canta ao estilo de um cantor real?

Em muitos países, o direito de imagem não tem regulamentação clara ou específica. Em Espanha, por exemplo, é reconhecido como parte do direito ao bom nome, à intimidade e à própria imagem (Lei Orgânica 1/1982), mas a jurisprudência ainda está a construir critérios sólidos para lidar com casos envolvendo IA, redes sociais ou réplicas digitais. Isto gera insegurança jurídica para os artistas. E, pior ainda, um vazio normativo que os deixa indefesos face a práticas abusivas.

Informar em meios acessíveis e plurais

Daí a importância de informar. E não apenas em fóruns especializados, mas em meios acessíveis e plurais, onde os artistas possam compreender o que está a mudar – e como isso os afeta. Porque uma lei que não se conhece é uma lei que não protege. E num contexto onde a inovação avança mais depressa que o Diário da República, essa distância pode ser fatal para o criador.

Queremos fazer a ponte entre a lei e a vida artística – entre os textos legislativos, as relações contratuais e a prática quotidiana de quem vive do seu trabalho criativo, do seu estilo, da sua imagem.

Informar é empoderar. E, neste momento de transição, os artistas precisam de ferramentas, conhecimento e redes. Não podemos permitir que as mudanças legislativas passem despercebidas, nem que o discurso sobre a tecnologia se imponha sem um olhar crítico da cultura. Defender a arte não é um luxo: é uma tarefa coletiva, um ato de responsabilidade. E começa pelo conhecimento da realidade tecnológica e jurídica – e dos seus efeitos, presentes e futuros. A informação verdadeira e o conhecimento são a melhor garantia de um futuro mais justo.


Abel Martín Villarejo é advogado e diretor-geral da AISGE – Sociedad de Gestión de Artistas Intérpretes o Ejecutantes de España, entidade que representa essencialmente atores, bailarinos, dobradores e diretores de cena no setor audiovisual. A sua longa experiência na defesa dos direitos dos artistas, tanto no plano jurídico como institucional, confere autoridade à reflexão que aqui partilha e que foi originalmente publicada no boletim semanal da AISGE.