Diretiva MUD: AEPO-ARTIS pede ao Governo português uma transposição justa para artistas

Ioan Kaes, secretário-geral da AEPO-Artis, organização europeia que representa 650 mil artistas e que a GDA integra, escreveu ao ministro português da Cultura, Pedro Adão e Silva, defendendo que a transposição para a legislação portuguesa da Diretiva sobre os Direitos de Autor e conexos no Mercado Único Digital “deve ser acompanhada de medidas específicas adicionais que permitam atingir o objetivo de uma remuneração justa”. Abaixo reproduz-se uma tradução integral da carta.

Implementação da Diretiva do Direito de Autor para o Mercado Único Digital (Directiva nº 2019/790) em Portugal

A AEPO-ARTIS é uma organização sem fins lucrativos que representa 37 organizações de gestão coletiva de artistas Europeus de 27 países diferentes, incluindo a entidade cooperativa portuguesa GDA. O número de artistas, dos sectores áudio e audiovisual representados em conjunto por nossos membros pode ser estimado em 650.000.

Escrevemos a V. Exa. a propósito das nossas preocupações sobre a implementação da diretiva nº 2019/790 em Portugal.

O prazo para a respectiva implementação foi 7 de junho de 2021, prazo há muito vencido.

Em julho de 2022, a Comissão Europeia enviou uma segunda carta de infração a todos os países que ainda não tinha transposto integralmente a directiva, incluindo Portugal. A próxima fase neste procedimento oficial de infracção será iniciada muito em breve e consistirá em notificar formalmente os restantes nove Estados-Membros pelo incumprimento.

Sabemos que isso traz consigo a possibilidade de sanções, mas pedimos cautela antes de Implementar a directiva apenas para evitar um processo perante o Tribunal de Justiça Europeu.

A opção por uma transposição literal por meio de um mero copy/paste da diretiva na sua legislação nacional é uma escolha contra os artistas e uma redução das suas possibilidades de viver da exploração online do seu trabalho.

A Diretiva nº 2019/790 nos seus considerandos 3 e 72-73 é muito clara relativamente ao facto de as novas possibilidades de exploração das obras e prestações deverem constituir uma fonte de rendimento para todos os titulares de direitos. A directiva enfatiza a necessidade de adaptar e complementar o quadro de direitos de autor da União existente, mantendo um elevado nível de proteção de direitos autorais e direitos conexos no ambiente digital.

No entanto, em vez de propor novas regras concretas, o legislador europeu refere-se ao equilíbrio que alcançou ao longo de anos de harmonização através de várias diretivas sobre o direito de autor e insta os estados-membros a transpor esse equilíbrio para ambiente digital. Nessa medida, os artigos 17 e 18 introduzem obrigações pró-ativas e preveem que os Estados-Membros “devem” disponibilizar os mecanismos para garantir a eficácia dos princípios consignados nestes considerandos.

O artigo 18.º introduz o princípio de «uma remuneração adequada e proporcional para os artistas» quando transferem os seus direitos exclusivos. Compete aos Estados-Membros assegurar a mesma por meio de qualquer mecanismo disponível.

Este princípio também se aplica à nova categoria de utilizadores que foi adicionada pelo artigo 17 da Diretiva, aos chamados provedores de serviços de partilha de conteúdos online, como seja o caso do YouTube, Facebook e TikTok. O artigo obriga os Estados-Membros a assegurar que estes provedores não podem mais esconder-se atrás do porto seguro da diretiva de comércio eletrônico, ao mesmo tempo que fazem um uso massivo de conteúdos protegidos pelo direito de autor. Estas plataformas têm que remunerar a cultura e o setor criativo.

No entanto a directiva não oferece qualquer garantia de que as receitas resultantes desta nova obrigação de pagar, sejam compartilhadas com os artistas. Compete aos Estados-Membros fornecer esses meios e garantir que o princípio do artigo 18 também se aplica aos provedores de serviços de partilha de conteúdos online.

Embora seja a maneira mais rápida de evitar novas etapas no procedimento de infracção, uma implementação literal dos artigos 17 e 18 não mudará a realidade para os artistas portugueses e europeus. A necessidade de transposição urgente não deve ser efectuada à custa da proteção dos artistas que são a cara do nosso sector cultural.

A questão que Portugal deve, portanto, colocar é se já dispõe de tais mecanismos em vigor e se estes são adaptados em relação a explorações de obras e prestações. Portugal pode aplicar o princípio existente de remuneração equitativa para qualquer comunicação ao público (ver n.º 3 do artigo 184.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos) aos actos de comunicação ao público em plataformas como Youtube, Twitch? Pode fazer isso aplicável ao consumo não interativo de música em plataformas como Spotify, Deezer ou Apple? Ou terá de alargar o âmbito do artigo 178.º, n.º 2, para incluir a colocação à disposição do público de fonogramas e videogramas?

Existem várias maneiras de resolver o problema atual dos artistas, mas uma coisa é certa: a transposição deve ser acompanhada de medidas específicas adicionais que permitam atingir efetivamente o objetivo de uma remuneração justa.

Recorde-se que a Comissão Europeia realizará uma verificação de conformidade para garantir que todos os Estados-Membros tenham transposto a diretiva de forma compatível com as obrigações que a directiva cria. Os Estados-Membros que não adaptem a sua actual legislação ou que não incluam medidas específicas adicionais não passarão nesta verificação de conformidade e ficam sujeitos a futuros processos de infracção da Comissão Europeia.

A menos que esse Estado-Membro possa provar que a regulamentação existente é adequada para o mercado digital, como sucedeu com Espanha. A Espanha já dispunha de um mecanismo de remuneração em funcionamento para os artistas que resistiu ao teste dos Artigos 17 e 18. Ao transpor a directiva nº 2019/790, optaram por uma tecnologicamente neutra aplicação de um direito de remuneração irrenunciável que já se aplicava às plataformas de streaming há vários anos e que agora se aplica automaticamente aos provedores de serviços de partilha de conteúdos online.

Um exemplo de um país que recentemente (junho de 2022) introduziu de forma correcta as medidas específicas adicionais como parte da implementação da directiva nº 2019/790 é a Bélgica. Este país resistiu à pressão para optar por uma transposição literal e, embora isso significasse não respeitar o prazo de implementação, alcançou por outro lado melhorar os direitos de artistas e dar cumprimento aos requisitos da diretiva. Em suma, conseguiu uma transposição eficaz e conforme da directiva.

No mês passado, a Eslovénia também introduziu mecanismos de remuneração adicionais para artistas para atingir os objectivos do artigo 18.º.

Estamos cientes de que Portugal está agora sob uma pressão de tempo considerável devido à próxima terceira etapa da Comissão Europeia no processo de infração. Nós também sabemos que os principais players comerciais da indústria do entretenimento estão a aumentar essa pressão com declarações infundadas e previsões apocalípticas do fim da música e das artes audiovisuais em Portugal. No entanto, isso não deve levar Portugal a adiar as suas responsabilidades para com os seus próprios artistas.

A única razão válida para o atraso na transposição da directiva é poder providenciar as adaptações necessárias e complementares que levem a uma melhor proteção para dos artistas no ambiente digital.

A AEPO-ARTIS trabalhou em estreita colaboração com o legislador Belga e Esloveno na transposição da diretiva e foi capaz de demonstrar a estes países que a transposição efectuada cumpre efectivamente a directiva. Ficaríamos honrados em trabalhar com o Governo português para adaptar o Código do Direito de Autor e Direitos Conexos de forma a refletir as necessidades online dos artistas.

Estamos disponíveis para discutir o acima exposto durante uma reunião no futuro próximo.

Com os melhores cumprimentos,

Ioan Kaes
Secretário-geral