Pensar os direitos em tempos de mudança

Neste número da nossa Newsletter, damos início a uma série de artigos de opinião, assinados por responsáveis de sociedades de gestão congéneres da GDA. O convidado desta edição é Abel Martín Villarejo, advogado e diretor geral da AISGE, de Espanha.

Os paradigmas do ‘Deus Tecno’

Por Abel Martín Villarejo, advogado e diretor-geral da AISGE (Espanha)

Por detrás de cada criação há alguém que investiu tempo, talento e esforço. Se não o protegermos hoje, amanhã quem sofrerá essa desproteção serás tu.

Os criadores artísticos, em todas as suas formas, enfrentam há séculos um inimigo silencioso: a marginalização jurídica ou a invisibilidade legal. Enquanto o produto do seu trabalho criativo ocupa capas de revistas, galerias e palcos – e mesmo tendo sido o alicerce económico da rádio, da televisão, do cinema e das atuais plataformas digitais – os seus direitos permanecem frequentemente em segundo plano, sujeitos a interpretações variáveis, lacunas legais ou interesses económicos dominantes.

Hoje, mais do que nunca, informar sobre a realidade legislativa, contratual e o impacto dos avanços tecnológicos sobre o trabalho criativo e as suas formas de exploração não deve ser encarado como um exercício académico, teórico ou especulativo, mas sim como uma verdadeira necessidade social, cultural, económica e democrática. Em suma, como um ato de justiça e de responsabilidade.

O desconhecimento, as crenças mal formadas e os interesses espúrios contribuem para o estado de confusão social, política e institucional que atravessa o setor cultural, onde o coletivo artístico é protagonista principal. Por tudo isto, é fundamental que o próprio artista-criador tome consciência do seu estatuto social e cultural, da sua realidade jurídica, e de que a luta pelos seus direitos – laborais, de propriedade intelectual, de imagem e direitos fundamentais – é a única garantia viável do seu trabalho e do seu reconhecimento futuro.

Encontramo-nos, de facto, numa fase evolutiva de profunda e vertiginosa transformação. A irrupção da Inteligência Artificial (IA), sobretudo da IA generativa; o desenvolvimento das plataformas digitais; os deepfakes e a circulação massiva de conteúdos visuais e sonoros estão a reconfigurar não apenas a forma como se cria arte, mas também como ela é explorada, distorcida e apropriada.

Neste novo cenário, o direito de autor e o direito de imagem são as primeiras linhas da frente onde se travam batalhas. Mas o direito de autor – ou, de forma mais ampla, a propriedade intelectual – carece, há décadas, de uma atualização substancial que permita responder eficazmente à nova realidade tecnológica. Os fundamentos e dogmas do direito de autor e do copyright remontam ao século XIX, e vivem hoje de costas voltadas para a tecnologia contemporânea e para as dinâmicas do mercado de conteúdos culturais, especialmente os audiovisuais.

Uma estratégia para o futuro

Com instrumentos jurídicos tão frágeis e obsoletos, é impossível enfrentar os desafios colocados pela IA e por outras tecnologias disruptivas de última geração. Na nossa modesta opinião, a estratégia de futuro deverá passar, pelo menos, pelas seguintes linhas de ação:

  1. fomentar, por parte dos próprios criadores, uma consciência ativa de defesa das suas criações e do valor do seu esforço e criatividade;
  2. atualizar a propriedade intelectual como sistema jurídico eficaz de proteção da criatividade humana;
  3. desenvolver novas fórmulas jurídicas para proteger os conteúdos gerados autonomamente, sem intervenção humana, por inteligência artificial. A tendência atual de abarcar todo o tipo de criatividade – como num saco sem fundo – sob o conceito de propriedade intelectual é, desde logo, um erro de base.

Várias batalhas vêm sendo travadas nas últimas duas décadas e em múltiplos níveis. Mas, com meios de defesa grosseiramente desiguais, a comunidade criativa enfrenta os grandes conglomerados tecnológicos multinacionais. E nesta luta desequilibrada, a parte mais poderosa já seduziu a sociedade civil com ofertas baratas, gratuitidade inicial e vantagens aparentemente insuperáveis.

A cidadania não se apercebe (e, em parte, os artistas também não) de que o caminho iniciado nos conduz ao fracasso da nossa civilização: cultura e entretenimento confundem-se; a arte deixa de estimular o pensamento crítico; deixaremos morrer as democracias por comodismo ou impotência; e, quando quisermos reagir, poderá já ser demasiado tarde.

Este pequeno espaço de reflexão sobre tecnologia e direito é apenas mais um grão de areia com o qual procuramos alertar, propor ideias e informar sobre como se poderá construir um futuro de convivência em paz e harmonia. Porque sem justiça não há paz nem futuro. E sem soluções justas, a própria indústria cultural destruirá os modelos de negócio que a sustentam – e ruirá, como ruíram as torres mais altas.

Progresso e trabalho alheio

Atualmente, os lobbies mais agressivos e influentes do “Deus Tecno” estão a promover reformas legislativas em vários centros de poder mundiais, com o objetivo de legitimar a apropriação de trabalho alheio, mesmo contra o interesse público. O paradigma económico, social, cultural, político e geopolítico está a mudar, sob o olhar atento, perplexo e impotente de todos nós.

Em Bruxelas, por exemplo, estão a ser consideradas iniciativas que poderão alterar profundamente a forma como as plataformas usam conteúdos protegidos. Ignoram-se as implicações do treino de modelos de linguagem e de geração de imagens com materiais que incluem vozes, estilos e rostos de artistas vivos. Quando se fala em “progresso tecnológico”, omite-se muitas vezes que esse progresso se alimenta do trabalho de outrem – do trabalho dos artistas. E que raramente há compensação ou reconhecimento justo.

Importa, pois, colocar nos seus devidos termos a tensão entre direito e tecnologia. Ninguém contesta os benefícios dos avanços tecnológicos na vida quotidiana, na ciência, na economia e até na cultura. A tecnologia tem sido, até hoje, aliada da criatividade – não inimiga. Mas a confluência de tantas circunstâncias adversas começa a gerar efeitos colaterais nocivos (como o impacto sobre o trabalho de atores de voz, designers, escritores, etc.) que colocam em risco todo o tecido económico e cultural.

Daí a urgência de abrir esta janela de comunicação. Vivemos rodeados de arte e de tecnologia e, todos os dias, usufruímos de ambas sem nos interrogarmos sobre o que está por trás: quem são os detentores de direitos, como esses direitos são geridos e se estão a ser respeitados.

Muitas vezes partimos do princípio de que a criatividade é livre e gratuita, como se brotasse espontaneamente de uma fonte comum – ou como cogumelos no bosque. Mas não é assim: por trás de cada criação há alguém que investiu tempo, talento e esforço. E esse investimento merece proteção adequada e digna.

Não podemos aceitar que só beneficiem desse processo aqueles que nada contribuem para a criatividade, com o argumento demagógico de que tal serve também o interesse dos cidadãos. Os cidadãos devem compreender que nada é gratuito — tudo tem um valor intrínseco, de que alguém se apropria. E que, se não respeitarmos o esforço e os direitos dos outros, também o nosso deixará de ser respeitado.

Um problema de vontade política

O direito de autor, que durante séculos protegeu os criadores contra a exploração, está hoje a ser posto à prova como nunca. As legislações nacionais tentam adaptar-se, com maior ou menor sucesso, a um contexto global e digital onde os conteúdos são carregados, editados, copiados e monetizados em segundos. O problema não é apenas técnico — é de vontade política: se não se legisla com conhecimento do mundo criativo, corre-se o risco de favorecer os grandes operadores tecnológicos em detrimento dos autores individuais.

Tão importante como o direito de autor é o direito de imagem, frequentemente esquecido nos debates sobre propriedade intelectual. O rosto, a voz, os gestos de um artista fazem parte da sua identidade, da sua marca e do seu percurso. E hoje, essas identidades podem ser recriadas digitalmente com fidelidade inquietante. A tecnologia permite clonar vozes, gerar vídeos hiper-realistas, criar avatares falsos. Que acontece quando a imagem de um ator é usada sem consentimento para publicitar um produto? Ou quando uma voz artificial canta ao estilo de um cantor real?

Em muitos países, o direito de imagem não tem regulamentação clara ou específica. Em Espanha, por exemplo, é reconhecido como parte do direito ao bom nome, à intimidade e à própria imagem (Lei Orgânica 1/1982), mas a jurisprudência ainda está a construir critérios sólidos para lidar com casos envolvendo IA, redes sociais ou réplicas digitais. Isto gera insegurança jurídica para os artistas. E, pior ainda, um vazio normativo que os deixa indefesos face a práticas abusivas.

Informar em meios acessíveis e plurais

Daí a importância de informar. E não apenas em fóruns especializados, mas em meios acessíveis e plurais, onde os artistas possam compreender o que está a mudar – e como isso os afeta. Porque uma lei que não se conhece é uma lei que não protege. E num contexto onde a inovação avança mais depressa que o Diário da República, essa distância pode ser fatal para o criador.

Queremos fazer a ponte entre a lei e a vida artística – entre os textos legislativos, as relações contratuais e a prática quotidiana de quem vive do seu trabalho criativo, do seu estilo, da sua imagem.

Informar é empoderar. E, neste momento de transição, os artistas precisam de ferramentas, conhecimento e redes. Não podemos permitir que as mudanças legislativas passem despercebidas, nem que o discurso sobre a tecnologia se imponha sem um olhar crítico da cultura. Defender a arte não é um luxo: é uma tarefa coletiva, um ato de responsabilidade. E começa pelo conhecimento da realidade tecnológica e jurídica – e dos seus efeitos, presentes e futuros. A informação verdadeira e o conhecimento são a melhor garantia de um futuro mais justo.


Abel Martín Villarejo é advogado e diretor-geral da AISGE – Sociedad de Gestión de Artistas Intérpretes o Ejecutantes de España, entidade que representa essencialmente atores, bailarinos, dobradores e diretores de cena no setor audiovisual. A sua longa experiência na defesa dos direitos dos artistas, tanto no plano jurídico como institucional, confere autoridade à reflexão que aqui partilha e que foi originalmente publicada no boletim semanal da AISGE.