Mercado digital em Portugal não pode ignorar as recomendações europeias

O Parlamento Europeu e a Comissão Europeia legislaram para que os artistas do espaço europeu possam receber um pagamento justo pela utilização online das suas obras. Conheça os argumentos da GDA neste artigo de opinião assinado por Pedro Wallenstein

Um artigo de opinião de Pedro Wallenstein, presidente da GDA*

Viver em plena transição digital, construindo todos os dias a nova sociedade do conhecimento, tem as suas dificuldades. Que o digam os órgãos de comunicação social, que só têm acesso a uma pequena parte das receitas que geram na Web, onde hoje são vistos, ouvidos e lidos pelos cada vez mais numerosos espetadores, ouvintes e leitores que os acompanham minuto a minuto.

Que o digam também os autores, que da previsibilidade da remuneração que lhes era prestada no mundo analógico, passaram, hoje, à incerteza de verem o essencial das receitas geradas pelo seu trabalho ficarem nas mãos de quem domina as plataformas e os mercados digitais.

E que o digam, sobretudo, os artistas!

Apesar de o “online” estar a gerar as maiores receitas de sempre para a música e para o audiovisual, apenas os intérpretes musicais recebem uma questionável parcela das receitas originadas pela utilização do seu trabalho. Os executantes musicais e a generalidade dos atores e dos bailarinos não recebem nada – rigorosamente nada! – pelo produto gerado online com o seu trabalho e o seu talento.

Foi por a situação ser esta que o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia legislaram para que os artistas do espaço europeu (tal como os autores e os média) possam receber um pagamento justo pela utilização online das suas obras. A Diretiva do Mercado Único Digital (MUD), a Diretiva MUD, quer garantir que a exploração online das obras musicais e audiovisuais seja uma fonte de rendimento justa e proporcionada para todos os artistas, intérpretes e executantes titulares de direitos.

A GDA – Gestão dos Direitos dos Artistas, a entidade que em Portugal gere os direitos de propriedade intelectual de atores, bailarinos e músicos, lançou uma campanha a propósito da transposição para a ordem jurídica nacional da Diretiva MUD que, quanto mais não seja, teve a virtude de contrariar alguma apatia e resignação do nosso sector cultural e criativo nesta matéria. A GDA representa em Portugal perto de 15 mil atores, bailarinos e músicos por mandato direto – e mais de um milhão ao abrigo dos contratos de reciprocidade internacional.

A GDA tem procurado ancorar as suas posições nas fontes mais credíveis e equidistantes possível, assumindo posições que, sem nunca perder de vista os compromissos e o alinhamento com as federações e associações internacionais em que se insere, são das mais moderadas e conciliadoras desse universo. Aliás, não existe da sua parte intenção de impor o modelo da gestão coletiva: a gestão coletiva, em si, é uma mera ferramenta que pode ser usada para atingir os objetivos previstos na Diretiva, assegurando a justa remuneração de certos artistas que, sem ela, ficariam excluídos do Mercado Único Digital.

Nesta Diretiva, como aliás em qualquer outra, o articulado principal representa o patamar mínimo, a “linha vermelha” abaixo da qual nenhum estado-membro pode descer. E tão, ou mesmo mais, importantes do que este articulado, são os considerandos que o precedem. Ora, nenhuma das propostas apresentadas pela GDA em sede de audição pública extravasa o teor dos considerandos, nem ultrapassa a margem de manobra que eles concedem aos estados-membros.

No entanto, o texto enviado pelo Governo à Assembleia da República reitera a opção por uma transposição minimalista e “ipsis verbis”, traindo o espírito da Diretiva europeia e confirmando o cínico preceito que Lampedusa imortalizou no seu Il Gattopardo: “Alguma coisa deve mudar para que tudo fique na mesma”.

Todavia, a legislação nacional sobre o mercado único digital não poderá ignorar as recomendações do Parlamento Europeu sobre a situação dos artistas e a recuperação cultural da União Europeia. Dos 45 pontos sobre a política cultural da União, oito são expressamente dedicados à Diretiva MUD e estão em consonância com as posições que a GDA vem assumindo: recolheram os votos a favor de todo o espectro político português representado no Parlamento Europeu.

É verdade que não existem para Portugal estudos rigorosos sobre a realidade digital da música e do audiovisual. Mas podemos assumir que, salvo particularidades, as realidades nacionais acompanham o mundo globalizado nas suas tendências genéricas. Neste sentido, recomendamos às partes interessadas três documentos produzidos por entidades de insuspeita idoneidade, equidistância e rigor científico e político.

 O relatório da Comissão “Digital, Cultura, Média e Desporto” do Parlamento britânico é um deles. O Parlamento britânico ouviu e analisou exaustivamente os depoimentos de criadores, peritos do sector, serviços de streaming, músicos, editoras discográficas e empresas tecnológicas, tendo produzido conclusões que estão em linha, ou vão mesmo além, das teses defendidas pela GDA.

Outro é o estudo da Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI (agência das Nações Unidas com sede em Genebra) “The Artists in the Digital Music Marketplace: Economic and Legal Considerations”. Este estudo, confirmando muitos dos argumentos da GDA, fornece um riquíssimo manancial de dados e informações sobre a diversidade de pontos de vista, terminando com um quadro comparativo dos prós e contras das várias soluções possíveis.

Também a compilação de relatórios, guias e ferramentas editada pelo Fórum dos “Managers” Musicais – MMF, sob o título “Dissecting the Digital Dollar”, mostra como a análise e os dados estatísticos avançados por uma das mais relevantes organizações internacionais de empresários musicais coincide com a dos artistas portugueses.

Resumindo e concluindo: a transposição da Diretiva MUD irá viabilizar, ou matar, as condições de possibilidade da vida artística no Portugal digital do futuro.

A GDA apela por isso aos deputados e ao ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, que revejam a proposta que está em cima da mesa e que, no pouco tempo que há disponível para transpor a Diretiva MUD, voltem a ouvir os representantes dos artistas, dos autores e dos órgãos de comunicação social.

Os artistas só exigem o que os órgãos da União Europeia pedem que lhes seja dado: justiça e proporção.

*Publicado, na edição de 13 de junho de 2022, do jornal Público