Por Bruno Gaminha, diretor de Distribuição e de Sistemas de Informação da GDA
A mais superficial das análises feitas à evolução dos modos de produção, distribuição, consumo e fruição da música concluirá rapidamente que o atual contexto global é marcado por uma circulação intensiva de conteúdos culturais. Paradoxalmente um estudo de 2019 (relatório final: Music Moves Europe – A European Music Export Strategy)[1] indica que em média, apenas, 15% da música ouvida em serviços de streaming na UE provém de países europeus (excluindo o Reino Unido), ao passo que 42% é música originária dos Estados Unidos.
Até mesmo o repertório britânico ocupa uma fatia maior do que toda a música continental europeia nos mercados da UE. Estes números ilustram a insuficiente circulação das obras europeias no próprio território europeu, revelando um potencial por explorar e uma integração europeia por construir.
Desenvolver um mercado único europeu da música revela-se fundamental para facilitar a circulação transnacional de obras, artistas e serviços culturais. Atualmente, apesar da inexistência de fronteiras físicas no espaço da UE, subsistem barreiras invisíveis que fragmentam o mercado musical.
Diferentes línguas, preferências culturais nacionais e uma viscosidade na circulação da música que resultam numa realidade em que cada país tende a consumir sobretudo a sua produção local e repertório anglo-americano, com pouca troca de repertórios intraeuropeus. Estes argumentos ilustram a insuficiente circulação das obras europeias no próprio território europeu, revelando um potencial por explorar. Um verdadeiro mercado único da música poderia equilibrar este panorama, reduzindo a dependência europeia de importações culturais extraeuropeias e incrementando a difusão recíproca das diversas músicas nacionais.
Para um país de pequena dimensão como Portugal isso significaria multiplicar a audiência alcançável sem sair do espaço comunitário – transformando um mercado doméstico de 10 milhões de pessoas num mercado interno europeu de mais de 450 milhões de consumidores. Obras portuguesas poderiam, assim, encontrar público na Alemanha ou na Suécia com a mesma facilidade com que hoje chegam a Coimbra ou ao Braga. Em última análise, a integração do mercado musical alinhar-se-ia com os princípios fundadores da UE de livre circulação – não apenas de bens e pessoas, mas também de ideias e criações culturais.
Desenvolver um mercado único europeu da música seria, portanto, uma forma de concretizar esse potencial, harmonizando regras e infraestruturas para que a circulação transnacional seja fluida. Além de ampliar as oportunidades para artistas e empresas, tal mercado único contribuiria para afirmar a autonomia cultural europeia num setor hoje globalizado. Em vez de 27 mercados fragmentados, a UE passaria a dispor de um espaço musical unificado e competitivo, apto a dialogar de igual para igual com os grandes blocos globais na promoção dos seus repertórios.
Pilares para a construção de um Mercado Único da Música
A concretização de um mercado único da música requer a construção de infraestruturas robustas em dois níveis: o conceptual, que abrange políticas, financiamento e redes de cooperação; e o físico/tecnológico, que inclui plataformas, logística e sistemas interoperáveis de dados e direitos.
Para um mercado único funcional, os decisores políticos devem assegurar a convergência de regras que hoje variam de país para país: desde as quotas de música local nas rádios, a introdução de quotas de música europeias, aos regimes de incentivo fiscal para produção cultural, até à justa remuneração dos artistas interpretes e executantes pelas utilizações da sua música no contexto digital.
Os modelos de financiamento são outro pilar conceptual. A criação de um mercado musical europeu exigirá investimentos em criação, promoção, formação e inovação.
Finalmente, a rede de cooperação cultural europeia precisa de se consolidar como estrutura de apoio a este mercado único. Um mercado único da música beneficiará de redes permanentes que unam festivais, salas, promotores, editoras e artistas europeus, criando circuitos onde um artista português possa facilmente ter acesso a palcos em Madrid, Berlim ou Estocolmo, e reciprocamente artistas dessas cidades venham a Portugal. Além disso, redes de formação e capacitação ampliariam as competências necessárias para operar internacionalmente, uniformizando conhecimentos sobre mercados estrangeiros, marketing digital ou gestão de direitos. Em suma, a infraestrutura conceptual consiste em alinhar políticas, viabilizar financiamento adequado e cultivar laços de cooperação pan-europeus.
A par das iniciativas conceptuais, a dimensão física e tecnológica da integração do mercado musical requer investimentos e coordenação em várias frentes. Um primeiro elemento central são as plataformas digitais. No contexto do mercado único, idealiza-se um ecossistema digital onde qualquer consumidor europeu possa aceder legalmente ao repertório de qualquer país da UE, sem restrições arbitrárias de catálogo ou localização. Isso implica aprofundar a interoperabilidade entre serviços de música online e talvez desenvolver plataformas agregadoras de conteúdo europeu. Embora serviços globais como Spotify, YouTube Music ou Apple Music já operem na maioria dos países europeus, há oportunidades para criar vitrinas dedicadas à música europeia nestas plataformas – por exemplo, através de secções específicas, playlists editoriais pan-europeias ou sistemas de recomendação que favoreçam descobertas transnacionais e o florescimento da diversidade cultural europeia.
Uma segunda componente física relaciona-se com os centros logísticos e de distribuição. Embora a música gravada hoje circule sobretudo em formato digital, o mercado musical abrange também artefactos físicos e, principalmente, espetáculos ao vivo. Para que haja um verdadeiro mercado único, é preciso facilitar a mobilidade física da música: isto significa simplificar a circulação de artistas e do seu equipamento, otimizar rotas de digressão europeias e até criar infraestruturas e centros de serviços partilhados.
Finalmente, a interoperabilidade tecnológica e de gestão de direitos constitui um elemento crítico desta infraestrutura. A indústria da música baseia-se numa teia complexa de informação (metadados de obras, identificadores, registos de utilização) e num sistema de remuneração de direitos de autor e conexos. Para um funcionamento transfronteiriço fluido, é necessário que os sistemas tecnológicos “conversem” entre si. Isto abrange a adoção generalizada de normas comuns como o código ISRC para identificar gravações, o ISWC para identificar obras, bem como a criação de bases de dados partilhadas ou interligadas a nível europeu. Atualmente, a identificação da origem e titularidade de uma música nem sempre é trivial quando se cruzam fronteiras – por exemplo, um artista português pode gravar em Espanha com uma editora holandesa; garantir que essa faixa seja devidamente rastreada e monetizada em toda a Europa requer sistemas inteligentes e integrados.
O papel da tecnologia e a participação da GDA
Na GDA temos estado intensamente envolvidos no desenvolvimento destes sistemas e na construção de uma infraestrutura tecnológica partilhada que permita responder à estratégia de criação de um mercado único europeu de música. O trabalho que temos desenvolvido no âmbito da SCAPR[2] (onde coordenamos o grupo responsável pela evolução e pelos desenvolvimentos tecnológicos) tem permitido a construção de uma base de dados única mundial para a identificação unívoca de artistas, o IPD – que permite que cada artista interprete ou executante tenha uma identidade partilhável reconhecível em mais de 50 países – e o VRDB, base de dados partilhada por mais de 30 países que permite partilhar repertório (incluindo a lista de todos os músicos intérpretes e executantes que participam em cada um dos fonogramas) e lista de obras utilizadas e que geraram direitos em cada um dos países.
Também temos estado envolvidos ativamente no desenvolvimento e implementação dos diferentes protocolos DDEX – padrão técnico internacional que codifica o padrão de troca de metadados de música e da coreografia envolvido na troca dos dados entre as diferentes partes interessadas – no nosso sistema de documentação e distribuição, garantindo a interoperabilidade e inclusão do espaço de dados da música portuguesa no ecossistema global de dados e metadados da música.
[1] European Commission: Directorate-General for Education, Youth, Sport and Culture, Factory 92, KEA European Affairs, Le bureau export, Music Austria, Smidt, P., Sadki, C., Winkel, D., Le Gall, A., Saraiva, N., Jacquemet, B., Hergovich, F., Kern, P., Demeersseman, M., Miclet, F., Dorgan, A., Pletosu, T.Sillamaa, V., Music moves Europe – A European music export strategy – Final report, Publications Office, 2020, https://data.europa.eu/doi/10.2766/40788
[2] SCAPR, Conselho das Sociedades para a Gestão Coletiva dos Direitos dos Artistas Intérpretes e Executantes. https://www.scapr.org